
Uma das principais dúvidas dentro da área do Direito do Trabalho é: a cota de aprendizagem pode ser alterada via negociação coletiva de trabalho, a exemplo do que ocorre no segmento de vigilância patrimonial privada?
Confira o comentário do advogado Ricardo Nogueira Monazzi, especialista em Direito Empresarial com ênfase em Direito do Trabalho do escritório Marchetto, Além&Borim Advogados Associados:
De início é cogente trazer à lume, para responder a questão proposta, outra indagação: qual seria o limite da negociação coletiva?
Cediço é que, após a vigência da Lei 13.467/2017, denominada como “Reforma Trabalhista”, foram traçados parâmetros para a negociação coletiva e dotado a essa supremacia a ordenamento legal, isto é, a norma coletiva negociada dentro dos limites prevalece sobre o a norma estatal (“caput” do artigo 611 da CLT).
Entretanto, essa parametrização posta nos artigos 611-A e 611-B, ambos da CLT, quanto ao que se pode negociar referenciado no primeiro, e quanto aos temas que se veda negociação elencados no segundo dispositivo citado, deve sempre ser analisada com caráter restritivo, ante as consequências sociais e econômicas que podem gerar.
Nesse compasso, o quanto dispõe o artigo 611-A da CLT não implica em uma autorização expressa de supressão de direitos sob qualquer égide, muito menos daqueles insculpidos no texto Constitucional ou em Lei própria que proteja pessoas vulneráveis ou que busca a inserção dessas no mercado de trabalho, justamente em apreço a questões excepcionais ou especiais que tem lastro no princípio da dignidade da pessoa humana, aqui posto em caráter genérico.
Destarte, o que queremos dizer com tal argumento é justamente um nexo axiológico à resposta final, quanto ao questionamento realizado, passando, obviamente, pelos limites da negociação coletiva, pois, essa, mesmo após o advento da lei reformista que oportunizou a elevação das normas coletivas para prevalecer essas sobre as estatais, não autoriza um ambiente sem limites nesse aspecto.
Com efeito, nesse desiderato importante trazermos à lume Vólia Bomfim Cassar (2017, p. 76) que, ao ponderar sobre o artigo 611-A da CLT, assevera que o indigitado dispositivo não teve como objetivo ampliar direitos, uma vez que isso sempre foi possível por qualquer norma coletiva.
O que de fato ocorreu é que com tal exegese normativa se torna possível que a maioria dos direitos contidos na CLT, que não se encontram na Constituição Federal, possam a ser objeto de negociação coletiva, integrando um rol de direitos disponíveis.
Vólia, ainda em acertada dicção ao nosso sentir, acerca do artigo 611-B da CLT (2017, p. 82), consagra ser claro que o dispositivo não é taxativo, e sim restritivo, afinal, esqueceu esse de impedir que a negociação coletiva viole, por exemplo, direitos da personalidade e liberdades garantidas pela Constituição da República.

Importante destacarmos que quando a citada autora consigna que o artigo 611-A da CLT torna possível que a maioria dos direitos contidos na CLT, que não se encontram na Constituição Federal, possam ser objeto de negociação coletiva, integrando, portanto, um rol de direitos disponíveis, ingressamos na seara da indisponibilidade dos direitos laborais listados no artigo 7º da Constituição Federal de 1988. Tais direitos só poderiam ser objeto de negociação coletiva, se a própria norma entabulada promovesse situações, prestigiando melhorias daquelas mínimas previstas pelo texto constitucional.
Embora a negociação coletiva como direito constitucionalmente assegurado também conte no artigo 7º, no inciso XXVI da Constituição da República de 1988, essa garantia não goza de um caráter absoluto, visto que há limites legais e formais a serem seguidos pelos próprios outros direitos listados no mesmo preceito legal.
De igual sorte, o rol de direitos sociais no qual está inserido o Direito ao Trabalho possui a característica da progressividade com o fito de propiciar melhorias ao cidadão trabalhador.
Seria, portanto, o princípio da progressividade um dos limites à negociação coletiva, uma vez que as normas ali positivadas (referimo-nos ao texto constitucional, em especial ao artigo 7º) não poderiam flexibilizar direitos dos trabalhadores, nem precarizar as relações de trabalho, especialmente no que tange, por exemplo à saúde e segurança ou dentro das nuances de melhorias sociais, aquelas de acesso ao mercado de trabalho (Lei do Estágio e Lei da Aprendizagem), bem como a de inclusão do indivíduo com necessidade especiais.
Nessa trilha, é inegável que a norma insculpida no caput do artigo. 7º da Constituição da República de 1988 tem natureza progressiva, a qual seu texto claramente remete ao aperfeiçoamento e proveito da condição social dos trabalhadores.
Logo, a negociação coletiva de trabalho não é ilimitada ou sem parâmetros, pois temas como segurança do trabalho, aprendizagem, estágio, cotas para pessoas com necessidades especiais, isto é, normas que se prestam a concreção da dignidade da pessoa humana, minorias, acesso ao primeiro emprego, tudo têm caráter indisponível, enquadrando-se, inclusive, na vedação legal contida no texto do caput do art. 9º da CLT, somados ao princípio da vedação ao retrocesso social que pressupõe, na esfera dos direitos sociais fundamentais do trabalho, não haver retrocesso de normas já existentes.
A proibição ao retrocesso social é demasiadamente tratada pelos doutrinadores constitucionalistas, tendo sido denominada, no âmbito dos direitos humanos, como “efeito cliquet”.
Segundo CANOTILHO (2002), “efeito cliquet” é uma expressão francesa utilizada pelos praticantes do esporte de alpinismo, exprimindo a ideia de que só há possibilidade de subir, de movimentar-se para cima, simbolicamente retratando a impossibilidade legal do retrocesso das normas de caráter social.
Teriam, portanto, o Princípio do Não Retrocesso Social e o Princípio da Progressividade o condão de colocarem limites à autonomia das partes na celebração da negociação coletiva, em especial quanto aos limites de todos os direitos postos no artigo 7º da CRFB, só podendo negociar acerca daqueles temas, se for no sentido de majorar o patamar.
Portanto, visto de maneira mesmo que superficial esse tema tão vasto e profícuo (limites da negociação coletiva), temos por obrigação de ofício enfrentar a questão central, apesar de já ser possível denotar a resposta com a explanação alhures.
Quanto à cota de aprendizagem, na mesma linha do já dissertado, essa não pode ser alterada por norma coletiva, pois, esse liame é tratado por norma estatal (Lei 10.097/2000) que trouxe a redação do artigo 429 e seguintes da CLT.
Ao apreço desse viés, temos que a contratação do aprendiz é obrigatória para estabelecimentos de qualquer natureza e envolve um contrato de trabalho especial, por no máximo dois anos, para jovens com idade entre 14 a 24 anos, desde que inscritos em programa de formação técnico-profissional, apondo o dispositivo que o número de aprendizes deve ser de 5%, no mínimo, e 15%, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada empresa, com funções que demandem formação profissional.
Pois bem, além do que já tratamos, em especial sobre os limites da autonomia privada coletiva, importante trazermos à baila que o próprio artigo 611-B da CLT também vedaria tal espécie de temática negocial, ao apor a indisponibilidade acerca dos direitos das crianças e adolescente no seu inciso XXIV, o que, em tese, além da fundamentação supra, constitucional, poderíamos encontrar outro óbice no citado dispositivo.
Aliás, nesse sentido, foi a decisão proferida nos autos do processo 0000071-69.2019.5.23.0131[1], ao impor aos Sindicatos de motoristas e de empresas de transporte de Mato Grosso a obrigação de não fazer ou de se abster de celebrar acordos ou convenções coletivas que flexibilizem ou alterem a base de cálculo da cota legal de aprendizagem, e que reduzam as medidas de proteção legal de crianças e jovens fixando, multa de 50 mil reais para cada ente sindical em caso de descumprimento, reconhecendo, ainda, no caso, dano moral coletivo causado pela lesão que atingiu não só as pessoas que deixaram de trabalhar durante a vigência da norma questionada, como toda a sociedade que não teve a inclusão e profissionalização de seus jovens.
Em acréscimo, importante evidenciar que, no que pese haver setores ou atividades que disponham de maior dificuldade de cumprimento da cota, há uma saída, já que foi promulgado, desde 2016, o Decreto nº 8.740, de maio de 2016, que alterou o Decreto nº 5.598/2005, incluindo no artigo 23-A a possibilidade do cumprimento alternativo das cotas de aprendizagem.
Tal dispositivo é destinado especialmente àquelas empresas que exercem atividades que possam dificultar a contratação de aprendiz, como ocorre no segmento de vigilância patrimonial privada.
Assim, percebe-se que esse citado dispositivo permite que a empresa contrate o aprendiz, mas este realize as atividades práticas em local diferente da empresa contratante.
Ou seja, a empresa contrata o aprendiz, paga o curso de qualificação e salário, mas este presta o serviço em outro local (na entidade concedente), sendo fundamental a celebração de termo de compromisso com o Ministério do Trabalho e Previdência Social (hoje Ministério da Economia), entre o estabelecimento contratante e a entidade qualificada, bem como a realização de parceria, conjuntamente, com uma das entidades concedentes para a realização das aulas práticas.
Dessa forma, citando o ilustre doutrinador, Mauricio Godinho Delgado, para caminharmos à conclusão, ele assevera que o empregado aprendiz é figura importante no Direito do Trabalho por traduzir fórmula jurídica de inserção da juventude nos benefícios civilizatórios da qualificação profissional pelo caminho mais bem protegido, que é o da relação de emprego.
Ora, se tal instituto tem consigo tal mister, não há que relativizar aludido direito como disponível, ainda mais para atender aos interesses empresariais em detrimento da parte menos favorecida, sendo certo que o aprendiz já tem ceifado seu já dificultoso acesso ao mercado de trabalho, não se possibilitando a abertura de margem via normativa coletiva, quer seja por parte dos entes sindicais, quer seja por parte da empresa, o translucido descumprimento de sua intrínseca função social.